We Like Nerds

Ascensão

      Tudo tornou-se branco. O branco leitoso e envolvente, no entanto, foi se reinventando em cores; amarelo, verde e vermelho, de início, em seus tons pastéis, para não fazerem desaparecer a calma invulnerável do perpétuo branco, que mesmo não mais estando às vistas ainda ali estava. As cores não se intensificaram. Há quem diga que as cores só se tornam deslumbrantes quando o humor do observador se deixa deslumbrar. Para mim, uma perfeita mentira. Olhos são olhos em qualquer lugar; a única mudança emocional que os poderia iludir seria a que trouxesse lágrimas à tona e tornasse turva a visão. De mais a mais, mal amados também conseguem admirar as cores, e provavelmente até mais que os seus opostos, por fazer delas suas acompanhantes íntimas na falta de uma jovem a interpretar este papel. Eu não fui solitário, no entanto, soube admirar as cores e formas e luzes e texturas quando essas mostravam-se a mim. Fui ingênuo o suficiente para superestimá-las algumas vezes, é verdade, mas nunca seco demais para ignorá-las.  Nunca!

      As cores que antes se pintavam no retrato que eu deixara para trás  queriam o fazer real novamente. Pois não as deixei; o primeiro impulso me impelia a voltar ao que era de costume, ao verossímil, mas o cenário abstrato trazia-me muito mais prazer; as cores foscas, muito mais acalanto. Elas eram eu e, se vivendo fui por demais comedido, que não o fosse mais agora; manifestem-se os devaneios que a mente não é autêntica suficiente para legitimar! Com efeito, por não querer me conter em mim, perdi o controle e, da forma como não queria, abracei frustrado as formas. Decerto não aquelas as quais preenchiam meus olhos antes que aqui estivesse, já que as rechacei, por um instinto primitivo ou pura ousadia, antes que pudessem transformar-me no que tinha acabado de abandonar, mas as formas de uma casa adorável, azul, com um quintal de grama verde, bem cuidada, e solitária e vistosa árvore, tendo como pano de fundo o céu vespertino do inicio do outono.  Os raios de sol que batiam sobre mim, em todos meus diferentes traços, fizeram despertar uma sensação de familiaridade com a paisagem. A sensação foi um tanto quanto pertinente, uma vez que apagou a insatisfação vinda com a  contrariedade e a insegurança trazida pelo desconhecido de uma só vez. Estas traiçoeiras sensações trazem-nos memórias. Uma vez, quando a juventude que me fizera atraente ainda era uma realidade (ah, se as melhores memórias mantidas  não fossem filhas de uma vaidade surrealista!) viajei de cidade em cidade, tendo como destino algum cenário paradisíaco ou algo que o valha. Em uma das cidades em que parei, conheci Pillar, mulher forte dos seios firmes, à qual me afeiçoei de imediato. Senti como se, com o sorriso com o qual me cumprimentara, comum nas pequenas vilas hospitaleiras onde a simpatia é quase uma característica compulsória, já conhecesse cada canto de minha vida. Senti como se não houvesse necessidade de diálogo algum. E estava certo. Passamos três tórridos dias juntos, sem trocarmos uma só palavra, somando o calor dos nossos corpos ao do verão, somando nosso suor às águas do mar que se estendia até onde a vista alcançava. Confiei minhas maiores intimidades a ela e ela a mim, sem que nenhuma informação fosse dita e que nosso tácito contrato fosse quebrado. Eventualmente fiquei sabendo o nome da moça numa troca de palavras com o padeiro, mas isso não tornou menos mágicos os dois dias que ainda estavam por vir, e que se arrastaram de má vontade a fim de ajudar-nos nos nossos gozos. O devaneio foi longo, eu sei, mas queria que ficasse entendido que é possível confiar em algo que não se sabe o que é e, se entregando, ter adoráveis surpresas.

      A tela estava pronta, porém vazia de vida. A solidão descia sobre mim à medida que eu subia, deslizando pelos galhos e folhas da frondosa árvore, junto à lua. Entreguei-me ao seu brilho não próprio, o perpétuo branco, eterna calmaria, e, na minha posição de imponente observador, esperei que meus volúveis sentimentos mornos de morto fossem acompanhados pelos elétricos e imprevisíveis dos vivos.