22 de junho de 2010


Mrs. Schriver apresenta

       Já cansei de ouvir aquela história de que não se deve julgar um livro pela capa. Para mim, isso é inevitável. Um livro é como uma pessoa: a aparência é inegavelmente a primeira coisa que chama a atenção, ainda que não seja o principal. E essa não é uma característica que pretendo mudar, porque foi por causa dela que encontrei o meu livro preferido: Precisamos Falar Sobre o Kevin (Ed. Intrínseca).
       Lionel Schriver tem um estilo marcante de escrita e de criação de personagens. Com apenas dois livros traduzidos para o português (Precisamos Falar Sobre o Kevin e O Mundo Pós-Aniversário), ela se tornou, de longe, a minha autora-modelo. Embora Kevin seja minha primeira escolha para escrever uma resenha, terminei há pouco O Mundo Pós-Aniversário, decidi, portanto, falar sobre a obra dela em conjunto.



       A personagem principal aqui é Eva Khatchadourian, mãe de Kevin, um garoto que, aos dezesseis anos matou sete colegas, uma professora e um servente no ginásio da escola. O livro é inteiramente composto pelas cartas que Eva escreve para o marido ausente, Franklin.
       De início, parece terrível, como se fosse feito para sociopatas, comumente atraídos por histórias tenebrosas banhadas por sangue. É aí que você se engana. Na realidade, a chacina da qual o adolescente foi o autor é mesmo o assunto menos abordado. Destaca-se como a mãe se sente tendo gerado aquela criança, fruto da insistência de Franklin, os conflitos dela como mulher e como mãe, vendo seu primogênito, antes apenas com um comportamento preocupante, se tornar um psicopata como os ela via nos jornais. Mostra o relacionamento de Eva e Franklin pré-Kevin e pós-Kevin, o nascimento de uma garotinha, dessa vez, muito desejada pela mãe, o amor cego do pai por Kevin.
       O que mais impressiona é que, em livros e filmes relativos à psicopatia, os holofotes estão sempre voltados para o assassino em si, em seus motivos e seus sentimentos (ou a falta deles). Schriver revoluciona ao focar na mãe. Ninguém se preocupa em perguntar como a família e os amigos (o menino Khatchadourian não possuía nenhum, mas não custa citar os que poderiam ter existido) enxergam aquilo tudo, como os afeta.
       Outro ponto marcante é como o sistema penitenciário americano não hesita em trancafiar Kevin, ainda que ele seja menor. Os membros governo brasileiro deveriam ler.
       Uma frase que a mãe fala para ele em uma de suas visitas à prisão me marcou:

“É preciso muito amor para te odiar dessa forma.”

       Com um final surpreendente, a dor de Eva é palpável.

 
 
 

       O Mundo Pós-Aniversário é talvez um dos livros com a dinâmica mais criativa que já li em toda a minha vida. Conta a história de Irina McGovern, uma ilustradora de livros infantis que vive há dez anos com Lawrence, que se recusa veementemente a se casar. Uma noite, o casal sai com Jude, uma colega de Irina, e seu marido, Ramsey Acton, um jogador de sinuca, esporte bastante popular na Inglaterra.
       Os encontros dos casais tornam-se regra para todos os aniversários de Ramsey. Até que ele e Jude se separam, ela e Irina brigam e a relação entre os quatro flutua no ar, indefinida. No primeiro aniversário divorciado, Ramsey janta com Irina e Lawrence. No segundo, Lawrence precisa sair da cidade e obriga a mulher a se encontrar com o jogador de qualquer forma. A contragosto, ela o faz. Durante o jantar, Irina, que antes sustentava uma certa repulsa pelo homem, o percebe interessante. E o que marca o ponto de ruptura que dá início ao fantástico da obra é o final da noite, quando, na casa de Ramsey, ela fica em dúvida se cede aos seus desejos e o beija.
       Na primeira parte que se segue, ela o beijou, na segunda, não. Daí, o título. Sua vida, então, se desenrola de duas formas paralelas e o que mais chama a atenção é nas atitudes das personagens que se correspondem entre uma parte e a outra, tudo levando a um mesmo ponto de inflexão.
       Com a frase final mais aterradora, mais incrível, mais bem colocada da história, Lionel mostra que, não importa a sua decisão, sempre terá um outro caminho a seguir e você chegará ao mesmo lugar, cabe a você decidir o que é melhor.

       Ambos falam de mulheres fortes, determinadas e independentes (ainda que Irina nos faça questionar isso algumas vezes), com personagens marcantes, uns odiáveis, outros queridos, Precisamos Falar Sobre o Kevin e O Mundo Pós-Aniversário, ouso dizer, são dois dos melhores livros dos últimos vinte anos.
       Já alerto: são leituras absolutamente cansativas e puxadas, requerem doses de paciência e dedicação generosas, principalmente para pessoas que ainda não passaram pelos dilemas da vida adulta (como eu), pois mostram um mundo além da nossa compreensão. Mas, se você chegar ao final, vai entender a minha idolatria. Aguardo ansiosamente a tradução de A Perfect Good Family.
       Lionel Schriver precisa falar sobre o Kevin em um mundo pós-aniversário. E todos deveriam parar para ouvir.

Por Gabi.

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