Sparks
Passou tanto tempo focado no trabalho que não notou que ela já vinha fazendo as suas refeições, dando beijos de boa noite, alimentando e levando o cachorro pra passear há mais ou menos três dias. Absorvido por seus novos personagens, perdido nos cenários que tinha criado para o seu romance, não tinha desgrudado os grandes óculos da tela por nem um segundo na última semana. Escrevia e reescrevia parágrafos, fazia anotações de ideias para os próximos capítulos, deletava tudo e começava do zero de novo e de novo.
Quando finalmente se viu com um capítulo inteiro pronto, fechou os olhos e recostou na cadeira, espreguiçando os braços e as pernas. Estava ali, depois de dias de tentativa, um pedaço dele impresso em papel. Notou que precisava urgentemente de um banho e já estava prestes a se levantar quando viu a maçaneta girando e uma perna feminina afastando a porta para entrar. Apavorado com a ideia de um estranho na casa, agachou-se atrás da escrivaninha, prendendo a respiração.
- Calvin... Calvin, para onde você foi? Não acredito que você finalmente saiu dessa cadeira por alguns segundos!
Ele conhecia aquela voz, mas era como se nunca a tivesse ouvido de verdade. Porque aquela mulher sabia o nome dele? O que estava fazendo no seu escritório no meio da noite, segurando uma bandeja na mão? As gotas de suor começaram a pingar na palma das mãos. Instalou-se um silêncio e ele ficou dividido entre o pavor e o alívio. Se virou para espiar, muito devagar, e deu de cara com um rosto redondo e muito branco, de olhos verdes absurdamente grandes e emoldurado com vários fios vermelhos mal penteados.
- Calvin! O que você tá fazendo aí embaixo??
Ele gritou desesperado e empurrou a cadeira com força na direção da mulher, engatinhou e correu para o lado oposto, pressionando as costas com muita força contra a parede, como se pudesse se fundir aos tijolos. Ele a conhecia. Ele a conhecia muito bem! Estava diante de uma das personagens do seu livro, materializada, vestida com uma meia-calça colorida e com os olhos ainda mais abertos do que já eram antes. Aquele momento fatídico tinha chegado: era agora mais um escritor enlouquecido, mais um que se deixava perder no mundo que tinha criado dentro da cabeça, mais um que perdia a conexão com vida real (que sempre foi frágil). Resolveu manter a calma e agir como uma pessoa normal. Como nos filmes, ele iria ignorar aquela mulher e ela desapareceria pra sempre. Mas enquanto estava entretido com estratégias, Claire se aproximou – esse era o nome que tinha dado pra ela – e tocou o braço dele com tanta delicadeza que ele nem se assustou. Ela o conduziu para a cama com calma, tratando-o como alguém sobrecarregado pelo trabalho, que precisava de descanso.
E ele descansou, de fato. Acordou no dia seguinte quase embriagado pela ideia de ter trazido um personagem à vida. Ficou semanas, meses extasiado com a perfeição de Claire. Passaram a viver juntos e quando as pessoas perguntavam onde tinham se conhecido, ele respondia “ela veio direto dos meus sonhos”. Ele a apresentava para os amigos, passeava com ela pelas ruas como um troféu, passava dias confinado em casa pintando-a, fotografando-a, observando-a. As coisas iam muito bem e ele mal percebia o quão egocêntrico aquilo podia ser.
Um dia, quase um ano depois, estava organizando seus arquivos no computador e achou o livro do qual Claire tinha saído. Lembrou de como aquele capítulo tinha sugado suas energias para ficar pronto, de quão satisfeito estava com o resultado enquanto se espreguiçava antes de a porta ser aberta e tudo mudar. Clicou e passou para a última página. Ia fazer alguns experimentos.
“Claire abriu a porta do quarto e entrou comendo uma maçã...” – digitou devagar. Passados dois segundos, a porta se abriu e ele a viu entrar no quarto com os cabelos presos em um coque e uma maçã na mão. “...deita na cama e começa a folear um livro”. Dito e feito. Nunca tinha se sentido tão orgulhoso na vida. A palavra melhor era poderoso, na verdade. Porque não tinha pensado isso antes? Claire continuava sendo produto da sua imaginação! Só era preciso passá-la pro papel. Novamente em êxtase com a imensidão de possibilidades que tinha a frente, ele começou a digitar rápido, testar sua nova descoberta. “Subiu na cama, começou a pular, a andar em círculos, tirou a camisa, soltou os cabelos, dançou valsa com alguém invisível, riu descontroladamente, recitou poemas em alemão, cantou Whitney Houston, Nirvana, Frank Sinatra...”. O entusiasmo o encharcou de tal forma que ele já não lia o que digitava. Seus olhos brilhavam e ele não conseguia parar de olhar sua própria criação. Sua obra de arte! Os dedos continuavam sua dança pelo teclado e Claire não interrompia sua interpretação nada ensaiada. Ele digitava e digitava com seus olhos vidrados, até que Claire caiu no chão com um estrondo enorme e os olhos se fecharam.
Calvin continuou a digitar esperando um retorno, mas nada fazia Claire se levantar do chão. Estava tão decepcionado quanto uma criança que estraga o brinquedo novo. Foi aos poucos saindo de seu estado de êxtase, os olhos demorando a focalizar a realidade com clareza. Encarou a tela do computador e viu as várias páginas de comandos que tinha digitado para Claire. As letras se embaralhavam em alguns pontos e a pontuação já era inexistente da metade em diante. E então, lá estava, na quina esquerda da última página, desconectado do resto do texto, seu último comando para Claire.
Dead.
foda
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