18 de fevereiro de 2011


A morte, a praia e o soldado

O céu ainda estava rasgado pela Lufftwaffe naquela tarde, e eu, finalmente, chegara a um grau de maturidade que me permitiu compreender que era bem provável que ele nunca mais pudesse ser costurado novamente.
Sentei no chão e comecei a desenhar sóis na areia. O mar, ora nervoso, ora tranqüilo, estava melancólico, e todos da cidade também. Era 1955, mas as pessoas ainda agiam como se dez anos não tivessem passado. Meu pai ainda se assustava com um barulho mais alto de motor e, de vez em quando, levava uma das mãos à perna esquerda como se ainda a tivesse.
- Você vai ficar bem – ele plantou um beijo no alto da minha testa a afagou meu cabelo escuro antes de sair e voltar somente três anos depois com cinco vezes mais dificuldade em demonstrar algum sentimento que não irritação e uma perna a menos.
Uma onda veio e desmanchou a diminuta paisagem que fiz. Pequenos flashes estouravam em minha mente. O coturno preto deixando pegadas na praia, enquanto a farda verde saía do meu campo de visão. Os olhos azuis como os meus, antes sorridentes, agora, amargurados.
- Eu devia ter ido antes dela – ele firmou a mão em meu ombro, enquanto o caixão era engolido por uma massa de terra.
Agora éramos apenas nós dois. Na maior parte do tempo, em verdade, sou apenas eu e o olhar perdido de meu pai, esperando que minha mãe vá aparecer do meio do mar, com os cabelos loiros molhados, grudados nas costas e o vestido azul emoldurando o corpo magro. Às vezes, sentia vontade de gritar. Ela está morta, não vai voltar nunca.
Mergulhei uma vez e sacudi a cabeça, tirando o excesso de água. Vi um soldado parado, observando-me. Achava que essa profissão havia acabado com a guerra, mas minha mãe disse, pouco antes de morrer, que nunca acabaria porque a vida é uma guerra em iminência. Ela vivia com medo e, por isso, morreu. Meu pai vai morrer também porque ele não vê mais sentido em continuar. Eu perguntei se eu não era um motivo. Ele disse que eu parecia mais com ela do que ele pudesse aguentar. Isso é mentira, eu não pareço.
Sentei na areia novamente. Uma onda quebrou aos meus pés e desenhei mais um sol.
- O que faz aqui? – o soldado perguntou atrás de mim.
- Estou desejando – respondi, fitando a linha que unia duas imensidões de tons diferentes de azul.
Ele tirou o sapato e sentou ao meu lado. Não olhei para ele.
- Desejando o quê?
Torci os fios do alto da minha cabeça, entornando gotinhas em cima do sol.
- Que o mar engula a cidade e acabe logo com esse sofrimento.
- Você não é muito nova para sofrer tanto a ponto de desejar o fim de uma cidade inteira?
Ele era um imbecil, um soldado que não via sofrimento. Devia ser cego.
Olhei em seu rosto pela primeira vez. Era jovem, uns três anos mais velho que eu. Cabelos ruivos cortados rentes a raiz, crescendo em uma única direção, rígidos como deveria ser a atitude de um militar. Olhos azuis grandes e redondos, uma pequena quantidade de sardas salpicadas pelo nariz fino. E uma boca sorrindo, estreita e fina. Vermelha como o céu.
- Não me preocupo com o meu sofrimento, pouco importa se ele acabe ou não. Quero que o mar varra todo o rastro que você e os outros capachos de Hitler deixaram. Se eu sofro não é por mim mesma, mas por toda a cidade. E, quando o mar engoli-la, não será o meu sofrimento que vai ter fim.
Ele riu e eu não entendi por quê.
- Falei algo engraçado?
- Eu era uma criança quando a guerra aconteceu, não é minha culpa se todos sofrem.
Tive certeza de que ele era um imbecil.
- É o fato de você se vestir e agir como eles, de ter se tornado um deles apesar de tudo que faz de você um grande culpado.
- Você quer dizer por eu ser soldado.
Definitivamente, ele era um imbecil. Revirei os olhos como resposta.
- Alguém precisa ser.
- Quer dizer, alguém precisa ser um assassino. O mundo não gira corretamente sem eles. É isso?
- Gira sem assassinos, sem militares ou sem garotas petulantes sentadas na beirada da praia, desenhando sóis. Mas não quer dizer que, por causa disso, eles vão deixar de existir.
- Também não quer dizer que devam.
Foi a vez de ele revirar os olhos.
Desenhei outro sol. Ele colocou seu próprio dedo na areia e desenhou uma nuvem ao lado.
- Vai chover – ele disse.
Desviei os olhos do céu de baixo para o de cima. Concordei com a cabeça.
- Talvez seja uma versão menos radical que Deus encontrou para lavar a cidade.
- Você sabe que ela nunca vai ser verdadeiramente limpa de novo?
- Eu sei, – esbocei um sorriso com um canto dos lábios, olhando para ele. Ele também olhava para mim. – eu sei.

4 comentários:

  1. meus pensamentos durante todo esse conto: "JESUS, TOME O VOLANTEahskdjasnjsljsdfljsdkxklsdklsdklsad"

    Amei. Principalmente o sétimo parágrafo. Principalmente essas duas últimas linhas. E ainda mais principalmente o fato do cretino do soldado ser ruivo.

    Amém, Zuda.

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  2. Amei. Principalmente o sétimo parágrafo. [2]

    Foda, Gabi.

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  3. Que foda Gabi! Muito foda mesmo! *-*

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